segunda-feira, 29 de outubro de 2007

No Caminho dos Anjos

Augusto dos Anjos apesar de possuir um pessimismo bem característico, faz um verdadeiro convite à vida em seu livro “Eu e Outros Poemas”. Com uma linguagem extremamente cortante, objetiva e amarga, Ele denuncia a morte, o engodo e a miséria como condição da vida humana. Augusto dos Anjos escreve exatamente aquilo que você não quer ler, ou melhor, aquilo que lhe é pertinente, mas você insiste em esconder.

A morte em Augusto dos Anjos, diferentemente de outros “pessimistas” históricos, é apresentada não como uma forma de libertação, mas sim a morte metafísica, o reflexo de uma vida mal vivida, de uma hipocrisia e obrigação sociais, como no poema “O Poeta do Hediondo” que o eu lírico diz sofrear pelas “Desgraças humanas congregadas" e se intitula o cantador de toda essa morte a fim de denunciar a indignidade da alma humana.

Relação parecida ocorre em toda obra desse louvável poeta. Em “O Lamento das Cousas” o eu poético apesar de niilista traz uma reflexão bastante convidativa:

“Triste, a escutar, pancada por pancada,
A sucessividade dos segundos,
Ouço, em sons subterrâneos, do Orbe oriundos,
O choro da Energia abandonada!

É a dor da Força desaproveitada
— O cantochão dos dínamos profundos,
Que, podendo mover milhões de mundos,
jazem ainda na estática do Nada! (...)”

(O Lamento das Cousas, Augusto dos Anjos)

Augusto, nesse poema, explicita a urgência da vida e nos faz um convite a não mais viver na “Energia Potencial”, na inércia newetoniana, no desperdício, seja do tempo, da força ou até da palavra.

Nesse sentido Augusto dos Anjos utiliza também o germen, o monstro e tudo que é grotesco em muitos de seus poemas como figura metonímica desse homem que já nasce fadado ao desespero por não ser capaz de conduzir sua própria vida sabiamente, fazendo questão de esconder seus próprios desejos: sejam eles carnais ou espirituais.


“Começaste a existir, geléia crua,

E hás de crescer, no teu silêncio, tanto

Que, é natural, ainda algum dia, o pranto

Das tuas concreções plásmicas flua!
A água, em conjugação com a terra nua,
Vence o granito, deprimindo-o... O espanto

Convulsiona os espíritos, e, entanto,
Teu desenvolvimento continua!

Antes, geléia humana, não progridas
E em retrogradações indefinidas,
Volvas à antiga inexistência calma!...

Antes o Nada, oh! gérmen, que ainda haveres
De atingir, como o gérmen de outros seres,
Ao supremo infortúnio de ser alma!”

(A Um Gérmen, Augusto dos Anjos)

Sim, o homem que já nasce fadado à infâmia, o homem determinismo social, pautado pela ciência e é nela que Augusto dos Anjos vai beber para construir grande parte de sua poética. Não com a finalidade da construção de um poema científico, mas sim uma poesia comovida pela grandiosidade da ciência e a insignificância do homem diante dela.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

A PASSAGEIRA - Musa Ramalho

A luz trêmula na sala do computador aguçava os zunidos que rondavam a aridez da janela noturna, e lá fora, montueiros de muros anônimos. Era a cidade nova. No ar “Tarde em Itapuã”, o único elemento desconexo àquele universo tipicamente burguês. Alguns besouros e poucos cheiros. Os instrumentos de trabalho ainda estavam sobre a mesa, e as sandálias da Arezzo viradas, espalhadas pelo chão. Eu não compunha aquele cenário bagunçado, mas era aquela a música hostil que a vida me propora.

Os dois últimos anos foram o hibernar inquietizador no mais tórrido dos invernos, nos mais gélidos verões. Quem chega a Eunápolis demora entender a emergência de seus paradoxos pré-adolescentes.

Eunápolis, em toda a sua emergência, urgia, carecia, necessitava. E eu, ainda mais passageira do que tudo ao meu redor, era o Homem quebrado pelo tempo, sem os traços de idade, fugidio e imutável. E cada parte num dado momento, numa dada linguagem. Dialetos que me revelaram metonímia do ensejo de meu próprio ódio: Eu, esse Homem, sedimentar.

O burguês não tem nada nas mãos. Faltam vínculos. Faltam os laços. Falta a genealogia de uma gente sem raiz. Era o povo de passagem, do quilômetro, num estágio transitório de vida. Pois a existência, em pareceria nula, traz sempre, e cada vez mais, o abismo da solidão, do cárcere privado. E também o desejo de evolução. Era necessário sair de lá. Só. E no berço dessa solidão desci perdida. Num infortúnio acaso, como todos os andarilhos dali que compartilhavam de minha mesma história.

Não tinha poética alguma, e era isso o que mais irritava. Aquela cidade média, medíocre, sem jeito nem cor. Tantos dialetos diversos, tantos rostos esquisitos e baratos. Tanto e tão pouco. Quem era aquele povo sem dono... Estranhas, aquelas pessoas sem história.

Mas era eu, a pré-adolescente apoética, intraduzível, intransmutável. Apatia de mim mesma. Estrangeira. Odiava aquele espaço como a minha própria vida, como quem se olha no espelho e se estranha, se entranha, e cada vez mais se deixa passar. Pois era eu: a parte pelo todo. A passageira, a deserta, a chata, a monótona, a bagunceira hipócrita. Morta, anônima, inexorável, imensurável. Era eu, tudo o que me foi inevitável construir: Eunápolis.