domingo, 30 de setembro de 2007

Em Quadros - Musa Ramalho

Viver às vezes me dói
Sentir, ouvir, ver, lembrar.
Eu ando pelo mundo
Prestando atenção em cores que eu não sei o nome
Eu vejo tudo enquadrado
Ou ao quadrado...
As coisas me doem mais
.
Eu presto atenção a cada detalhe
Que me aparecem tão grandes
Intensos
Poluídos até...
As vozes são altas, cores fortes,
E o tempo passa pausadamente,
Devagar... As janelas olham
Eu gosto de ver contemplar assistir:
Ver, a vida, passar...
.
Eu vejo tudo: indignação!
Eu me sinto impotente
Impotente perante a política, a fome, a dor, a falta de educação
Eu presto atenção a cada detalhe, e cada um deles me doe, arrancam-me um pedaço maior.
E me sinto impotente, enquadrada em mais um quadro da disparidade social. Mais uma impotente - imponente indignada.
Mais, alguém, que só, contempla.
.
Eu ando pelo mundo divertindo gente
Chorando ao telefone
Sentindo a dor das cores de Almodóvar,
Dos sons de rock, chorando e cantando os dramas
Correndo atrás do meu fogo encantado
Comendo chocolates
Degustando
Mirando

Estudando
Falando das coisas que aprendi nos discos
Da ferida viva do meu coração que sangra
E estanca
E sangra
E esquece
Do Povo Severino
Morte e vida Stanley!
.
Eu perco o chão pelos outdoors da Avenida 7
Me impressiono com os prédios
Eu não acho as palavras

Amo o carnaval - o espetáculo
Eu sou o samba!
Pagu indignada no palanque...
Herdeira da impunidade e de uma criminalidade vulgar
.
Como seria melhor se não houvesse refrão nenhum, mas há:
Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela vai nascer outro negro, ouviram? Mais um negro para trabalhar. Vai nascer outro negro, ouviram? Mais um negro para trabalhar

Eu sou neguinha!...
Ou lusa?...
Ou Musa?...
Ou Diva! Diva no Divan!
Comendo canapé
Na hora do lunch
Andando de ferryboat

Pertenço a high society!
Down, Down high society

Ou sou neguinha?...
.
Tava perguntado...
.
Era um gesto hippie, um desenho estranho...
Eu era o enigma, uma interrogação:
- Eu sou neguinha? Rezando ali?! Completamente uma crente?!
.
Eu gosto de opostos!
.
É... A engenharia caiu sobre as pedras... Um curupira já tem seu tênis importado! Não conseguimos acompanhar o motor da história, mas somos batizados pelo batuque e apreciamos a agricultura celeste. Mas enquanto o mundo explode, nós dormimos no silêncio do bairro... Pintando o estandarte de azul...
Pondo as estrelas no azul
Brincando de ser feliz,
E contemplando a palhaçada,
Os Palhaços do Circo sem Futuro
O circo pegando fogo,
O cerco se fechando...
Pra que mudar?
.
Nossa Senhora da Paz, a bailarina do circo, venha beijar a pele da cidade, no movimento da rua, as feridas, a fome e o motor.
Venha me beijar meu doce vampiro da impunidade
Minha sanguessuga
Meu amor... O beijo amigo é véspera do escarro...
Eu acordei e vi ninguém ao lado.
.
Eu! Filho do carbono e do amoníaco.
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância por contemplar...
E sentir a dor que deveras senti
A dor do tempo A dor das coisas, dos meninos que têm fome
A dor da seca,
Da força que nunca seca,

Dor do tronco
Contemplar minha cidadezinha qualquer, minhas mulheres entre laranjeiras, bem devagarzinho...
Ainda que me digam não estar na idade de sofrer por essas coisas, porém se não estou mais na idade de sofrer é porque estou morto, e morto é a idade que temos para não sentir nada...
.
Como seria melhor se não houvesse refrão nenhum, mas há:
.
Pela janela do quarto
Pela janela do carro

Vai nascer outro negro, mais um negro para trabalhar. Vai nascer outro negro, ouviram? Mais um negro para trabalhar. E o seu nome? Eu também não sei...

sábado, 15 de setembro de 2007

Metalinguagem - Musa Ramalho

Carrego olhos lassos
Lacrados pelo sono
Afogados no cansaço das lembranças
Dormir tornou-se um fardo
E a noite profusa,
Num desenrolar de palavras,
Parafusa o tempo congelado
Nesse único meu momento
De tradução

À FLOR DA PELE - Wileide Ferraz Ramalho Oliveira (mamãe)

Ando tão à flor da pele que até um vento na minha janela me faz doer.
Ando tão à flor da pele que até o ruído do silêncio dá combate no meu ser.
Ando tão à flor da pele que até o cheiro do ar que adentra pelas minhas narinas me faz rodopiar, sem prumo, sem rumo, sem novela pra chorar.
Então, me pergunto: por quê?
Será se fui afetada pelo lirismo dos poetas? Ou será se o mal- do- século XIX ressuscitou? Com toda a sua angústia, sua dor e seu desencanto com um mundo moderno, perdido sem educação, sem saúde, sem valor?
Fico triste quando vejo o meu latim sendo pregado no vácuo. A quem interessaria ouvir as paronomásias, as metáforas, as assonâncias, as sintaxes, as morfologias, as pragmáticas, e outros, se são tantos pés no chão, pornografias desveladas, gritos de desgraças e de revoltas pelo o ambiente, sopas pelo chão, concorrências com os celulares e até estilete na mão? Como educar um povo sem nada nas mãos?
O que era orgulho para a sociedade se tornou um peso, uma preocupação e um perigo estar numa escola pública hoje. Só quem vive essa realidade pode se revelar. Outro dia, tomei três pedras grandes de um aluno que já estava preparado para acertar o colega. Sem contar que quase levei uma queda quando esbarrei nos pratos de sopa espalhados pelo chão.
Infelizmente, educar hoje é tirar leite de pedra.
Você puxa, puxa, estica e a aula não evolui, não rende. O que se vê é a apatia, o descaso e o desânimo de um povo sem sonhos, sem lutas, sem causas.
Professores cada vez mais doentes, depressivos e desanimados com a sua profissão. Então eu pergunto: O que será do Magistério? Entrará em extinção? Faça um pequeno teste. Pergunte ao seu filho, ou algum parente se ele quer ser professor e veja se eu estou exagerando, e se não tenho razão de estar à for da pele.

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Amor Bastante - Paulo Leminski


quando eu vi você
tive uma idéia brilhante
foi como se eu olhasse
de dentro de um diamante
e meu olho ganhasse
mil faces num só instante
a
basta um instante
e você tem amor bastante
a
um bom poema
leva anos cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Word® Raça Ariana, Word® Albino e Word® Omo Multi Ação - Bruna Beber

Q W E R T Y U I O P
A S D F G H J K L Ç
Z X C V B N MO


O teclado me olha preto e imóvel. O tracejado branco em cada tecla me mostra todas as letras do alfabeto dois pontos acento agudo vírgula acento grave vírgula til vírgula ponto e vírgula reticências vírgula cedilha interrogação exclamação vírgula sinal de maior vírgula sinal de menor vírgula parênteses vírgula colchetes vírgula aspas vírgula chaves vírgula barra vírgula sinal de igual vírgula sinal de maior vírgula sinal de menor vírgula sinal de mais vírgula sinal de menos vírgula multiplicar vírgula dividir e ponto final.
Enfio meus dedos na caixa preta como se ali dentro eu fosse revelar uma fotografia. E pode ser que entre os espaços das palavras e os alinhamentos, eu extraia uma paisagem com montanhas em caixa alta. De um a dez eu tenho os números, e outros comandos bastante utilizados como o Foda-se 1, o Foda-se 2, o Foda-se 3...os F vão até o 12. Subo page up, desço page down, tabulo e com o delete eu apago, às vezes tudo. Mas não tem nada escrito desde que me lembro.

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

O Barato Sai Caro – Michel Melamed

Pesquei de uma matéria na Globo.com que no Brasil, corretores afirmam que o máximo que uma pessoa pode tentar fazer de seguro é no valor de R$ 350 mil. Talvez e muito provavelmente o Brasil não seja das melhores referências sobre o valor de uma vida, mas, como tampouco o mundo todo o é, tornou-se-me-ê impossível não vir às vias de fato: R$ 350.000, 00 multiplicados por 6 bilhões (população mundial estimada), sim, Consumidoras e Consumidores, temos finalmente ? para a alegria geral da Slu ? o valor total, o preço final da humanidade: R$ 2.100.000.000.000.000, 00.
Antes que alguém (algo?) se habilite e pipoquem flashes, lances e contrapropostas, a título de uma melhor apreciação do produto e sua respectiva cotação, pesemos as seguintes: quanto vale somadas todas as empresas multinacionais? E os estados (quiçá apenas os Unidos ? até nisso em desvantagem...)?
Assim, de posse de alguns pouco mais preciosos dados, creio que não tardará a conclusão de que na mercearia da vida, na bodega Mundão, a pechincha, queima de estoque, em liquidação... nós! Enquanto durar o estoque!
Aos que acreditam que a vida, a dignidade, justiça e outras quinquilharias mais não têm preço, resta um consolo: que custa por volta de R$ 35, 00 em qualquer Sex-Shop, o que corresponde a 0, 01% do nosso valor unitário. Em outras palavras: menos que um dedo médio ereto.

domingo, 9 de setembro de 2007

EU - Vladimir Maiakovski

EU
Nas calçadas pisadas
de minha alma
passadas de loucos estalam
calcâneo de frases ásperas
Onde
forcas
esganam cidades
e em nós de nuvens coagulam
pescoço de torres
oblíquas

soluçando eu avanço por vias que se encruz-
ilham
à vista
de cruci-
fixos

polícias

Obscenidades para uma dona-de-casa - Ignácio de Loyola Brandão

Três da tarde ainda, ficava ansiosa. Andava para lá, entrava na cozinha, preparava nescafé. Ligava televisão, desligava, abria o livro. Regava a planta já regada, girava a agenda telefônica, à procura de amiga a quem chamar. Apanhava o litro de martíni, desistia, é estranho beber sozinha às três e meia da tarde. Podem achar que você é alcoólatra. Abria gavetas, arrumava calcinhas e sutiãs arrumados. Fiscalizava as meias do marido, nenhuma precisando remendo. Jamais havia meias em mau estado, ela se esquecia que ele é neurótico por meias, ao menor sinal de esgarçamento, joga fora. Nem dá aos empregados do prédio, atira no lixo.

Quatro horas, vontade de descer, perguntar se o carteiro chegou, às vezes vem mais cedo. Por que há de vir? Melhor esperar, pode despertar desconfiança. Porteiros sempre se metem na vida dos outros, qualquer situação que não pareça normal, ficam de orelha em pé. Então, ele passará a atenção no que o carteiro está trazendo de especial para a mulher do 91 perguntar tanto, com uma cara lambida. Ah, aquela não me engana! Desistiu. Quanto tempo falta para ele chegar? Ela não gostava de coisas fora do normal, instituiu sua vida dentro de um esquema nunca desobedecido, pautara o cotidiano dentro da rotina sem sobressaltos. Senão, seria muito difícil viver. Cada vez que o trem saía da linha, era um sofrimento, ela mergulhava na depressão. Inconsolável, nem pulseiras e brincos, presentes que o marido trazia, atenuavam.

Na fossa, rondava como fera enjaulada, querendo se atirar do nono andar. Que desgraça se armaria. O que não diriam a respeito de sua vida. Iam comentar que foi por um amante. Pelo marido infiel. Encontrariam ligações com alguma mulher, o que provocava nela o maior horror. Não disseram que a desquitada do 56 descia para se encontrar com o manobrista, nos carros da garagem? Apenas por isso não se estatelava alegremente lá embaixo, acabando com tudo.

Quase cinco. E se o carteiro atrasar? Meu deus, faltam dez minutos. Quem sabe ela possa descer, dar uma olhadela na vitrine da butique da esquina, voltar como quem não quer nada, ver se a carta já chegou. O que dirá hoje? Os bicos dos teus seios saltam desses mamilos marrons procurando a minha boca enlouquecida. Ficava excitada só em pensar. A cada dia as cartas ficam mais abusadas, entronas, era alguém que escrevia bem, sabia colocar as coisas. Dia sim, dia não, o carteiro trazia o envelope amarelo, com tarja marrom, papel fino, de bom gosto. Discreto, contrastava com as frases. Que loucura, ela jamais imaginara situações assim, será que existiam? Se o marido, algum dia, tivesse proposto um décimo daquilo, teria pulado da cama, vestido a roupa e voltado para casa da mãe. Que era o único lugar para onde poderia voltar, saíra de casa para se casar. Bem, para falar a verdade, não teria voltado. Porque a mãe iria perguntar, ela teria que responder com honestidade. A mãe diria ao pai, para se desabafar. O pai, por sua vez, deixaria escapar no bar da esquina, entre amigos. E homem, sabe-se como é, é aproveitador, não deixa escapar ocasião de humilhar a mulher, desprezar, pisar em cima.

As amigas da mãe discutiriam o episódio e a condenariam. Aquelas mulheres tinham caras terríveis. Ligou outra vez a tevê, programa feminino ensinando a fazer cerâmica. Lembrou-se que uma das cartas tinha um postal com cenas da vida etrusca, uma sujeira inominável, o homem de pé atrás da mulher, aquela coisa enorme no meio das pernas dela. Como podia ser tão grande? Rasgou em mil pedaços, pôs fogo em cima do cinzeiro, jogou tudo na privada. O que pensavam que ela era? Por que mandavam tais cartas, cheias de palavras que ela não ousava pensar, preferia não conhecer, quanto mais dizer. Uma vez, o marido tinha dito, resfolegante, no seu ouvido, logo depois de casada, minha linda bocetinha. E ela esfriou completamente, ficou dois meses sem gozar.

Nem dizia gozar, usava ter prazer, atingir o orgasmo. Ficou louca da vida no chá de cozinha de uma amiga, as meninas brincando, morriam de rir quando ouviam a palavra orgasmo. Gritavam: como pode uma palavra tão feia para uma coisa tão gostosa? Que grosseria tinha sido aquele chá, a amiga nua no meio da sala, porque tinha perdido no jogo de adivinhação dos presentes. E as outras rindo e comentando tamanhos, posições, jeitos, poses, quantas vezes. Mulher, quando quer, sabe ser pior do que homem. Sim, só que conhecia muitas daquelas amigas, diziam mas não faziam, era tudo da boca para fora. A tua boca engolindo inteiro o meu cacete e o meu creme descendo pela tua garganta, para te lubrificar inteira. Que nojenta foi aquela carta, ela nem acreditava, até encontrou uma palavra engraçada, inominável. Ah, as amigas fingiam, sabia que uma delas era fria, o marido corria como louco atrás de outras, gastava todo o salário nas casas de massagens, em motéis. E aquela carta que ele tinha proposto que se encontrassem uma tarde no motel? Num quarto cheio de espelhos, para que você veja como trepo gostoso em você, enfiando meu pau bem no fundo. Perdeu completamente a vergonha, dizer isso na minha cara, que mulher casada não se sentiria pisada, desgostosa com uma linguagem destas, um desconhecido a julgá-la puta, sem nada a fazer em casa, pronta para sair rumo a motéis de beira de estrada. Para que lado ficam?

Vai ver, um dos amigos de meu marido, homem não pode ver mulher, fica excitado e é capaz de trair o amigo apenas por uma trepada. Vejam o que estou dizendo, trepada, como se fosse a coisa mais natural do mundo.

Caiu em si raciocinando se não seria alguém a mando do próprio marido, para averiguar se ela era acessível a uma cantada. Meu deus, o que digo? Fico transtornada com estas cartas que chegam religiosamente, é até pecado falar em religião, misturar com um assunto deste, escabroso. E se um dia o marido vier mais cedo para casa, apanhar uma das cartas, querer saber? Qual pode ser a reação de um homem de verdade, que se preze, ao ver que a mulher está recebendo bilhetes de um estranho? Que fala em coxas úmidas como a seiva que sai de você e que eu provoquei com meus beijos e com este pau que você suga furiosamente cada vez que nos encontramos, como ontem à noite, em pleno táxi, nem se importou com o chofer que se masturbava. Sua louca, por que está guardando as cartas no fundo daquela cesta? A cesta foi a firma que mandou num antigo natal, com frutas, vinhos, doces, champanhe. A carta dizia deixo champanhe gelada escorrer nos pêlos da tua bocetinha e tomo em baixo com aquele teu gosto bom. Porcaria, deixar champanhe escorrer pelas partes da gente. Claro, não há mal, sou mulher limpa, de banho diário, dois ou três no calor. Fresquinha, cheia de desodorante, lavanda, colônia. Coisa que sempre gostei foi cheirar bem, estar de banho tomado. Sou mulher limpa. No entanto, me pediu na carta: não se esfregue desse jeito, deixe o cheiro natural, é o teu cheiro que quero sentir, porque ele me deixa louco, pau duro. Repete essa palavra que não uso. Nem pau, nem pinto, cacete, caralho, mandioca, pica, piça, piaba, pincel, pimba, pila, careca, bilola, banana, vara, trouxa, trabuco, traíra, teca, sulapa, sarsarugo, seringa, manjuba.

Nenhuma. Expressões baixas. A ele, não se dá nenhuma denominação. Deve ser sentido, não nomeado. Tem gente que adora falar, gritar obscenidades, assim é que se excitam, aposto que procuram nos dicionários, para encontrar o maior número de palavras. Os homens são animais, não sabem curtir o amor gostoso, quieto, tranqüilo, sem gritos, o amor que cai sobre a gente como a lua em noite de junho. Assim eram os versinhos no almanaque que a farmácia deu como brinde, no dia dos namorados. Tirou o disco da Bethânia, comprou um LP só por causa de uma música, Negue. Ouvia até o disco rachar, adorava aquela frase, a boca molhada ainda marcada pelo beijo seu. Boca marcada, corpo manchado com chupadas que deixam marcas pretas na pele. Coisas de amantes. Esse homem da carta deve saber muito. Um atleta sexual. Minha amiga Marjori falou de um artista da televisão. Podia ficar quantas horas quisesse na mulher. Tirava, punha, virava, repunha, revirava, inventava, as mulheres tresloucadas por ele. Onde Marjori achou estas besteiras, ela não conhece ninguém de tevê?

Interessa é que a gente assim se diverte. Se bem que se possa divertir, sem precisar se sujeitar a certas coisas. Dessas que a mulher se vê obrigada, para contentar o marido e ele não vá procurar outras. Que diabo, mulher tem que se impor! Que pensam que somos para nos utilizarem? Como se fôssemos aparelhos de barba, com gilete descartável. Um instrumento prático para o dia-a-dia, com hora certa! Como os homens conseguem fazer barba diariamente, na mesma hora? Nunca mudam. Todos os dias raspando, os gestos eternos. É a impressão que tenho quando entro no banheiro e vejo meu marido fazendo a barba. Há quinze anos, ele começa pelo lado direito, o esquerdo, deixa o queixo para o fim, apara o bigode. Rio muito quando olho o bigode. Não posso esquecer um dia que os pelinhos do bigode me rasparam, ele estava com a cabeça entre as minhas pernas, brincando. Vinha subindo, fechei as pernas, não vou deixar fazer porcarias deste tipo. Quem pensa que sou? Os homens experimentam, se a mulher deixa, vão dizer que sou da vida. Puta, dizem puta, mas é palavra que me desagrada. E o bigode faz cócegas, ri, ele achou que eu tinha gostado, quis tentar de novo, tive de ser franca, desagradável. Ele ficou mole, inteirinho, durante mais de duas semanas nada aconteceu. O que é um alívio para a mulher. Quando não acontece é feriado, férias. Por que os homens não tiram férias coletivas? Ia ser tão bom para as mulheres, nenhum incômodo, nada de estar se sujeitando. Na carta de anteontem ele comentava o tamanho de sua língua, que tem ponta afiada e uma velocidade de não sei quantas rotações por segundo. Esse homem tem senso de humor. É importante que uma pessoa brinque, saiba fazer rir. O que ele vai fazer com uma língua a tantas mil rotações? Emprestar ao dentista para obturar dentes? Outra coisa engraçada que a carta falou, só que esta é uma outra carta, chegou no mês passado, num papel azul bonito: queria me ver de meias pretas e ligas. Ridículo, mulher nua de pé no meio do quarto, com meias pretas e ligas. Nem pelada nem vestida. E se eu pedisse a ele que ficasse de meias e ligas? Arranjava uma daquelas ligas antigas, que meu avô usava e deixava o homem pelado com meias. Igual fazer amor de chinelos. Outro dia, estava vendo o programa do Sílvio Santos, no domingo. Acho o domingo muito chato, sem ter o que fazer, as crianças vão patinar, meu marido passa a manhã nos campos de várzeas, depois almoça, cochila, e vai fazer jockeyterapia. Ligo a televisão, porque o programa Sílvio Santos tem quadros muito engraçados. Como o dos casais que respondem perguntas, mostrando que se conhecem. O Sílvio Santos perguntou aos casais se havia alguma coisa que o homem tivesse tentado fazer e a mulher não topou. Dois responderam que elas topavam tudo. Dois disseram que não, que a mulher não aceitava sugestões, nem achava legal novidade. A que não topava era morena, rosto bonito, lábio cheio e dentes brancos, sorridente, tinha cara de quem topava tudo e era exatamente a que não. A mulher franzina, de cabelos escorridos, boca murcha, abriu os olhos desse tamanho e respondeu que não havia nada que ele quisesse que ela não fizesse e a cara dele mostrava que realmente estavam numa boa. Parece que iam sair do programa e se comer.

Como se pode ir a público e falar desse jeito, sem constrangimento, com a cara lavada, deixando todo mundo saber como somos, sem nenhum respeito? Há que se ter compostura. Ouvi esta palavra a vida inteira, e por isso levo uma vida decente, não tenho do que me envergonhar, posso me olhar no espelho, sou limpa por dentro e por fora. Talvez por isso me lave tanto, para me igualar, juro que conservo a mesma pureza de menina encantada com a vida. Aliás, a vida não me desiludiu em nada. Tive pequenos aborrecimentos e problemas, nunca grandes desilusões e nenhum fracasso. Posso me considerar realizada, portanto satisfeita, sem invejas, rancores. Sou uma das mulheres que as famílias admiram neste prédio. Uma casa confortável, bem decorada, qualquer uma destas revistas de onde tiro as idéias podia vir aqui e fotografar, não faria vergonha. Nossa, cinco e meia, se não voar, meu marido chega, o carteiro entrega o envelope a ele, vai ser um sururu. Prestem atenção, veja a audácia do sujo, me escrevendo, semana passada. (Disse que faz três meses que recebo as cartas? Se disse, me desculpem, ando transtornada com elas, não sei mais o que fazer de minha vida, penso que numa hora acabo me desquitando, indo embora, não suporto esta casa, o meu marido sempre na casa de massagens e na várzea, esses filhos com patins, skates, enchendo álbuns de figurinhas e comendo como loucos.) Semana passada o maluco me escreveu: Queria te ver no sururu, ia te pôr de pé no meio do salão e enfiar minha pica dura como pedra bem no meio da tua racha melada, te fodendo muito, fazendo você gritar quero mais, quero tudo, quero que todo mundo nesta sala me enterre o cacete.

Apanho a carta, como quem não quer nada, olho distraidamente o destinatário, agora mudou o envelope, enfio no bolso, com naturalidade, e caminho até a rua, me dirijo para os lados do supermercado, trêmula, sem poder andar direito, perna toda molhada. Fico tão ansiosa, deve ser uma doença que me molho toda, o suco desce pelas pernas, tenho medo que escorra pelas canelas e vejam. Preciso voltar, desesperada para ler a carta. O que estará dizendo hoje? Comprei puropurê, tenho dezenas de latas de puropurê. Cada vez que desço para apanhar a carta, vou ao supermercado e apanho uma lata de puropurê. O gesto é automático, nem tenho imaginação de ir para outro lado. Por que não compro ervilhas? Todo mundo adora ervilhas em casa. Se meu marido entrar na despensa e enxergar esse carregamento de puropurê vai querer saber o que significa. E quem é que sabe?

É dele mesmo, o meu querido correspondente. Confesso, o meu pavor é me sentir apaixonada por este homem que escreve cruamente. Querer sumir, fugir com ele. Se aparecer não vou agüentar, basta ele tocar este telefone e dizer: "Venha, te espero no supermercado, perto da gôndola do puropurê." Desço correndo, nem faço as malas, nem deixo bilhete. Vamos embora, levando uma garrafa de champanhe, vamos para as festas que ele conhece. Fico louca, nem sei o que digo, tudo delírio, por favor não prestem atenção, nem liguem, não quero trepar com ninguém, adoro meu marido e o que ele faz é bom, gostoso, vou usar meias pretas e ligas para ele, vai gostar, penso que vai ficar louco, o pau endurecido querendo me penetrar. Corto o envelope com a tesoura, cuidadosamente. Amo estas cartas, necessito, se elas pararem vou morrer. Não consigo ler direito na primeira vez, perco tudo, as letras embaralham, somem, vejo o papel em branco. Ouça só o que ele me diz: Te virar de costas, abrir sua bundinha dura, o buraquinho rosa, cuspir no meu pau e te enfiar de uma vez só para ouvir você gritar. Não é coisa para mulher ler, não é coisa decente que se possa falar a uma mulher como eu. Vou mostrar as cartas ao meu marido, vamos à polícia, descobrir, ele tem de parar, acabo louca, acabo mentecapta, me atiro deste nono andar. Releio para ver se está realmente escrito isso, ou se imaginei. Escrito, com todas as palavras que não gosto: pau, bundinha. Tento outra vez, as palavras estão ali, queimando. Fico deitada, lendo, relendo, inquieta, ansiosa para que a carta desapareça, ela é uma visão, não existe e, no entanto, está em minhas mãos, escrita por alguém que não me considera, me humilha, me arrasa.

Agora, escureceu totalmente, não acendo a luz, cochilo um pouco, acordo assustada. E se meu marido chega e me vê com a carta? Dobro, recoloco no envelope. Vou à despensa, jogo a carta na cesta de natal, quero tomar um banho. Hoje é sexta-feira, meu marido chega mais tarde, passa pelo clube para jogar squash. A casa fica tranqüila, peço à empregada que faça omelete, salada, o tempo inteiro é meu. Adoro as segundas, quartas e sextas, ninguém em casa, nunca sei onde estão as crianças, nem me interessa. Porque assim me deito na cama (adolescente, escrevia o meu diário deitada) e posso escrever outra carta. Colocando amanhã, ela me será entregue segunda. O carteiro das cinco traz. Começo a ficar ansiosa de manhã, esperando o momento dele chegar e imaginando o que vai ser de minha vida se parar de receber estas cartas.

O texto acima, publicado em "Os Melhores Contos de Ignácio de Loyola Brandão", seleção de Deonísio da Silva, Global Editora — São Paulo, 1997, foi eleito por Ítalo Moriconi e consta do livro "Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século", Editora Objetiva — Rio de Janeiro, 2000, pág. 471.